— Oh! O Joaquim tem de compreender. Não podemos ter aquele tipo de acontecimentos nesta casa. — Armanda passou as duas mãos pela cabeça, como que a apanhar um cabelo invisível que tivesse fugido do gancho que prendia com firmeza o cabelo cinzento na nuca.
— Não tenho nada! TI-REM-ME DAQUI! — Joaquim soltou um berro de cansaço, fazendo uma última tentativa de libertar os pulsos amarrados à cadeira. O ímpeto foi tão grande que caiu desamparado para a frente. Ouviu-se um baque. Joaquim começou a gemer num tom quase inaudível. Escorria sangue da cabeça quebrada no chão.
— Ahhhhhhhhhhhhh! — a loira platinada atada a uma cadeira ao lado de Joaquim, soltou um grito. — Ele está a sangrar! Armanda, por favor! Esperamos o tempo que for preciso para ter a certeza, mas deixe-me ajudá-lo! — A sapatilha branca da loira ficou manchada de sangue.
Armanda fez um trejeito com os lábios e murmurou qualquer coisa acerca das cadeiras da tia-avó.
— Imagine só o que diriam os jornais sobre a casa Montalvão e Sá? Imagine o que diriam de nós. — Armanda fez uma pausa e retirou o batom «Vermelho Requinte» de uma pequena bolsa preta, que extraiu de um bolso fundo da saia.
— Vicente, confirme por favor se as cordas estão bem apertadas. Já peço para virem fazer um curativo ao Joaquim. Não somos monstros. — Armanda fitava Ana Rita nos olhos enquanto dizia cada palavra.
Vicente manteve-se em silêncio. Verificou a tensão nas cordas que prendiam o homem moribundo e levantou-se, confirmando, no espelho de parede, que não tinha salpicos de sangue na roupa. Sabia que não devia interferir nas decisões da mulher. Ajeitou o bigode. Não fosse a roupa Sacoor e uma pose ensaiada, Vicente seria um homem vulgar. Se agora era um gentleman, isso devia-se ao visual curado por Armanda. Ainda a olhar para o espelho, analisou a cena escabrosa que ocorria debaixo do seu tecto. Um homem amarrado a uma cadeira tombada no chão, que gemia de dor, com um enorme golpe na cabeça, de onde saíam jorros de sangue. Ao lado, a loira, com roupa uns números abaixo do que vestiu em tempos, soluçava e dava pulinhos na cadeira como se isso a ajudasse a sair dali. As cadeiras eram de madeira maciça, boa. Nada das porcarias nórdicas que agora se vendem ao desbarato. O choro compulsivo completava a imagem patética. O rímel barato tinha escorrido e criava dois grandes riscos desde as pálpebras inferiores, passando pelas bochechas até ao queixo. Ana Rita parecia, à falta de melhor palavra, uma palhaça de um circo pobre. Armandinha surgia impassível e gigante atrás deles. A pose de realeza, a roupa de última estação, o cheiro a YSL… Classe. Vicente voltou à memória recente.
Nas últimas semanas, uma loucura apoderara-se de Odivelas. Passados poucos dias, perdia-se a conta aos focos de infecção no distrito de Lisboa. Numa semana, o país tinha sido conquistado. Sem luta.
Como descrever a loucura? Era o tipo de acontecimentos que os pasquins publicariam, mas que o Expresso ia ignorar. Por isso, de início, passou despercebida. Pelo menos, à elite. Nas primeiras notícias, que não chegavam a ocupar meia página, falava-se do peculiar caso de uma mulher na Póvoa de Santo Adrião, que lavou as janelas com manteiga de amendoim. Em entrevista, garantia que sempre lavou janelas assim e não percebia a comoção. O tom do artigo era jocoso.
Lá para cima, um homem levantou-se da mesa, a meio de uma conversa sobre as obras na marquise, e disse aos amigos que ia passar férias aos EUA. Veio-se a descobrir que o homem se despira e atirara ao Mondego. Tencionava ir para os EUA a nado! O cadáver foi encontrado no rio, a 2 km do local onde tinha abandonado o carro.
No Forte da Casa, outra mulher foi apanhada a alimentar patos com um estufado, que preparara tendo o seu rafeiro Bobby como ingrediente principal. Foram as manifestações das associações protetoras dos animais, em frente à Assembleia, que contribuíram para levantar o alarme social. O que ninguém adivinhava é que já era tarde para deter o vírus.
Em todos os casos, as pessoas desempenhavam tarefas mundanas. Mas a noção do que era lógico e razoável desaparecera. Era impossível conversar com elas. Pareciam ter o cérebro contaminado. Pessoas brincalhonas e espirituosas perdiam a personalidade e tornavam-se um invólucro vazio. Ao fim de uns dias, os corpos imobilizavam-se. Depois, a morte.
Entre as vítimas (apenas adultos), não se contavam seniores com mais de 75 anos. O vírus sabia que, em certas idades, havia outras formas de o corpo desistir. Vicente observou a mulher colocar o batom nos lábios.
— Decerto a Ana Rita compreende. Nós não temos saído de casa, mas vocês sim. Idas ao supermercado e a feiras e assim. — Armanda gesticulou ainda com o batom na mão.
— Sabe-se lá onde andaram. Eu só saí uma vez. Fui ao chá-de-bebé do terceiro filho da Tita Pinto Coelho. Foi horrível, horrível. A Nininha Sousa Santos é uma das pessoas mais educadas que conheço. Sentiu uma textura estranha a trincar um dos rissóis. Ficou tão atrapalhada a pobrezinha. Ela quis cuspir para um papel, mas não conseguia. Ficou com uma linha de coser presa nos dentes. Quanto mais lutava, mais linha puxava. Metros e metros de linha azul. Com os gritos, até os meninos saíram da piscina para ver o que se passava. No fim, vimos que todos os rissóis tinham linha no recheio. Pedi logo ao Joaquim para me conduzir a casa. Não sei se vou conseguir ultrapassar o trauma — lamentou, colocando uma mão no peito. — É por isso que temos de nos certificar que a Ana Rita e o Joaquim não estão infectados. — Armanda levou o batom à boca e deu-lhe uma dentada.
— Armandinha… — o marido deixou a voz morrer-lhe nos lábios.
— Diga, Vicente? — Armanda arqueou as sobrancelhas, deixando antever um sorriso tingido por «Vermelho Requinte».