Já há muito que ninguém repara em mim. Sinto-me sozinha neste canto frio entre portas.
Recordo-me da última vez como se fosse ontem. O seu perfume era fresco, cor violeta, e a voz rouca soava a manhãs domingueiras de preguiça. As mãos leves sabiam onde me tocar, naquele ponto certo (só ao alcance dos mais perspicazes…), onde acontecia o clique; dois pontos pressionados em uníssono.
Como por encantamento, abria-me e ficava pronta, disponível. Simples. Sem grandes rodeios ou preliminares. Sentava-se à minha frente, de pernas abertas, muitas vezes, sem cuecas. E dizia-me baixinho: «Só assim me sinto inspirada, mais perto da minha essência de mulher criadora. Dás-me tudo o que eu quero. Dou-te o que mais precisas. Vamos ficar juntas para sempre. Prometo.». Uma intimidade só de nós duas.
Depois, tocava-me profundamente nas partes íntimas, onde eu guardava os segredos que só ela conhecia. A química entre nós era perfeita. Era toda minha; e eu era só dela.
Durante anos, fizemos história, até que ele se cravou entre nós. Aquele objeto frio, quadrado, sem odor ou personalidade, de som irritante e aspeto ascoso. Computador? Que raio de nome é esse?
Vi-a, sem nada conseguir fazer, a trocar a esferográfica de tinta preta — a sua favorita — e as folhas de papel virgens, sem qualquer pudor, a esquecê-las no meu âmago. Já não mais me tocou naqueles pontos secretos. O ciúme enrugava-me. Por vezes, deixava-me aberta, exposta, até ao galo madrugador juntar o despertar de dias seguidos, noites e amanheceres consecutivos.
Por quem é que ela me tomava? Uma escrivaninha qualquer? Não! Sou prima daquela que acompanhou o Aquilino Ribeiro, da escrivaninha versada em tanta cultura e sabedoria, que mesmo depois de atacada pelo xilófago e fungos, de ter sofrido as agruras da humidade e do calor, sobreviveu ao seu escritor.
Aliás, sou bem melhor do que a minha prima. Tenho mais escaninhos, e o tampo amovível dá-me uma outra elegância e versatilidade. Era com o tampo que mordiscava os dedos à minha musa. De forma suave, claro. Pequenos sinais de amor eterno para que não se esquecesse de mim. Numa tarde desinspirada, entalei-lhe o dedo indicador com mais força. Digamos… que foi o meu primeiro aviso. Julgo que o mindinho também sofreu, certo dia, um ligeiro acidente. Ainda lhe arranquei uma unha. De nada adiantou.
Não tive outra solução: entalei-lhe as duas mãos: carpos, metacarpos e falanges. Primeiro, devagar. Como adorei escutar o som crocante dos ossos a quebrar e os ligamentos a ceder! Em seguida, pressionei ainda mais, com toda a minha força ancestral, até o sangue gotejar intenso, vermelho quente (a mancha no chão não me deixa mentir).
«Amaldiçoada escrivaninha! Porque é que não resisti ao teu feitiço? O que queres de mim é demasiado!» Enquanto estas palavras lhe saíam da boca, misturadas com gritos dilacerantes e um olhar raivoso e desesperado, devorei-lhe os dedos, um por um. E por fim, só mesmo no fim, para que ela tivesse a consciência do que perdera, engoli-lhe toda a imaginação.