Túlia encarou o espelho, os olhos lampejantes não vislumbraram defeitos, apenas pele jovem e macia, doçura de boneca e inocente alvura, ligeiramente contrastada com rosas na face. Finalizou com perfume floral, oferta do último namorado, aquele que não admitia ter perdido.
Observou a rua, uma folha desprendeu-se do plátano e voou no frio de outono até tombar no alcatrão escuro. As mãos arrepiadas do frio voltaram a fechar a janela do quarto e a recolher-se ao conforto.
A solução estava para breve. Acreditava em horóscopos e influências astrais, na importância destes sistemas para atar uniões amorosas. O alinhamento de astros estava correto. A prova que a convencera a aventurar-se no desconhecido fora encontrar no metro uma folha de jornal esvoaçante e amarelenta, que lhe afundou dentro dos olhos o anúncio de Staccato, oráculo, senhor do futuro. Estranhamente, sem contactos, apenas morada nos arrabaldes da cidade. O mapa astral manifestara-se propício e, nesse dia, a publicidade do oráculo surgiu. O destino estava escrito.
A jovem rolou o ecrã do telemóvel, para verificar a localização da casa. Um músculo invisível puxava-a para aquele encontro, poder compreendido como sendo o dos deuses que presidem constelações, poderosos seres conciliares, que estariam a decidir o regresso do namorado, o preenchimento do seu coração com o amor que lhe fora negado. O oráculo clarificaria estas vontades superiores.
O destino era tangível. O autocarro chegou na hora exata, prenúncio miudinho da glória vindoura. Sorriu uma doçura brilhante como a dos vencedores. Depois, quando ultrapassou os limites da cidade, um frio sinistro abateu-se sobre as mãos delicadas e hesitou em encontrar-se com o desconhecido. A força invisível dos astros, da curiosidade, ou outra ainda, contudo, continuava a puxar e a arrastá-la.
*
Entrou. O soalho sombrio gemeu debaixo dos seus pés tímidos. O adivinho rodeou-a, cerviz caída e corpo oculto por uma túnica larga, donde pendia um amplo capuz. Os olhos leitosos fixaram-na, e um pequeno sorriso aflorou na boca escura. As mãos longas e geladas prenderam-lhe os pulsos e puxaram-na para a mesa, no centro da sala. Bebeu o chá que o velho, com uma voz cava e ofegante, lhe prometeu abrir os canais de leitura da mão. Staccato Barnum, nome completo do quiromante, mastigou nabos cozidos, gotejados com escuro azeite, gordura que lhe humedecia os beiços fendidos e o queixo protuberante. Deglutia-os aristocraticamente, manejando faca e garfo com rigor cirúrgico. Os talheres de metal polido eram a única coisa a emanar vida dentro do casarão lúgubre. As mãos longas, ossudas, com unhas sebosas, levantavam e baixavam como um relógio de pêndulo. Apesar do aspeto chupado, mantinham vigor juvenil, uma agilidade inesperada.
Túlia sentiu o ar ficar mais espesso, o ambiente enevoar e a voz roufenha do adivinho subir de tom. Empalideceu e apeteceu-lhe fugir. Era imperioso anular a consulta e sair para a segurança da rua. Os seus membros, porém, não se moviam. O corpo não reagia.
Staccato arrastou-a veloz para outra sala, onde ardiam velas escuras. Deitou-a sobre uma velha marquesa em T e prendeu-lhe os membros com múltiplas e desgastadas cintas, de maneira que ficasse imobilizada. Cada palavra projetada pelo quiromante parecia um zumbido a entrar nos ouvidos e a queimar por dentro.
Túlia tentou gritar, para se libertar da sensação, mas os lábios não agiam. O velho cingiu-lhe a cabeça para o lado esquerdo, para que visse a sua mão a ser decifrada.
— Leitura das mãos é ciência que os amadores não dominam. A interpretação profunda não fica pela observação da superfície — sentenciou, glaciar.
Puxou uma mesa com instrumentos metálicos dispostos no tampo enferrujado. Objetos cirúrgicos, reconheceu Túlia, já com lágrimas nos olhos. Barnum mostrou-se didático, levantou-lhe a mão imobilizada para que ela a visse e, com a unha suja, circunscreveu os dedos de Júpiter, Saturno, Apolo e Mercúrio, os montes de Marte, Neptuno, Vénus e Lua, e as linhas do coração, da cabeça e da vida.
*
Helena penteou-se com desvelo e coloriu as pálpebras viçosas. Decidira descobrir o seu futuro, o que significava viajar duas horas para encontrar o misterioso Staccato Barnum, oráculo de ferro, promessa do empolgante anúncio.
*
— Sejamos breves e precisos. Teremos de analisar com pormenor para que vejas o futuro, minha querida.
Staccato apertou uma espessa borracha no pulso delicado de Túlia, explicando que esta diminuiria as perdas de sangue. As lágrimas corriam aturdidas pela face imóvel. O corpo gelara.
— Enquanto a vida ainda tremula, joga fora a preocupação. A vida é curta, não deixes que nada te derrube — perorava, enquanto abria rasgos com o bisturi e separava, com finas tenazes, a pele da carne.
Quando o sangue turvava a visão do que fazia, chegava a boca à mão e lambia-a, delicadamente. Ensandecido, revirava os olhos e rangia os dentes, descortinando a dentição serrilhada, amarela, sedenta. A dor era horrível. Túlia gritava, apelava, pedia socorro, mas produzia apenas gemidos inaudíveis. A mão ardia; a carne em sangue expunha-se completamente ao ar.
— Neste momento, não podes compreender o sentido profundo das minhas palavras, porque a dor que te ferve nos tendões te impede de refletir.
— Por favor, pare… pare! — gritava Túlia no seu âmago, sem que a voz se fizesse ouvir.
Staccato lancetou os tendões de Neptuno e separou-os da carne e dos ossos. Observou-os no ar, à luz bruxuleante, e, por fim, sorveu-os como minhocas, rilhando os dentes para os despedaçar. Prosseguiu e descarnou o polegar. Trinchou-o com um cutelo em meia-lua. Levantou a peça para observar a falange e falangeta, ainda coladas pela articulação elástica, olhou-a e chupou a falange decepada, salivando louvores a Vénus. Túlia afogava-se num sofrimento ilimitado.
— Minha querida, o teu futuro é hoje — afirmou, enquanto levantava lençóis ensanguentados amontoados a um canto, desocultando um corpo. — Gostava de te dar novidades auspiciosas, mas tenho sessão marcada para outra jovem curiosa. Deliciosa a leitura da tua mão. O tempo, porém, faz sucumbir tudo.
Beijou-a docemente e lacerou-lhe a carótida.
— Talvez a esta Helena tenha tempo de ler as vísceras. Assim o exige a boa ciência.