Jingle bells! Jingle bells!
O comboio de Natal sobe a avenida. O Pai Natal toca a sineta e acena aos transeuntes. Apressados, procuram as compras de última hora.
Milhares de lâmpadas enfeitam as árvores e dão a ilusão de pinheiros de Natal. As montras iluminadas mostram os bens só ao alcance de alguns.
Misturadas com relógios de ouro e colares de joias raras, as figuras do presépio imitam a vida campestre. Um colar de pérolas enrolado simula as palhinhas do Menino Jesus. Os pastores e as ovelhas espalham-se entre anéis com pedras preciosas e pulseiras de diamantes. A base de veludo verde oferece a ilusão dos campos cobertos de musgo.
Num recanto sombrio, uma silhueta embrulhada em velhos cobertores e restos de cartões. Os caixotes que serviram para transportar os bens, que reluzem nas múltiplas montras, servem de proteção. Debaixo dos cobertores, gastos e malcheirosos, alguém remói uma ladainha. Um ser que esconde o rosto e a dor, sem identidade, transparente ao olhar da cidade. Incomodadas com a visão, as senhoras cobertas com casacos de pele afastam o olhar.
Na sua mente, o vulto impercetível visualiza a floresta onde, todos os invernos, caminhava com o pai à procura do melhor pinheiro para a árvore de Natal. Vê os verdadeiros pinheiros e as verdadeiras ovelhas. Um pastor leva o rebanho por entre as colinas, e as ovelhas saltam da montra. As mãos que acariciaram, que trabalharam e que amaram sentem o bafo quente dos animais.
O comboio desce a avenida.
Jingle bells! Jingle bells!
─ Não deixam dormir! Malditos! ─ resmunga o que se assemelha a uma figura humana enrodilhada na sombra.
Uma fúria diabólica apossa-se subitamente desse ser. Uma maldade satânica faz vibrar aquele corpo e corrompe-lhe a alma. Garrafas de vinho vazias rolam pelas pedras do passeio.
Ergue-se e arrasta os cobertores que cobrem parte das costas dobradas sobre si mesmo. Toma uma vivacidade que há muito desconhecia. Enlouquecido, brama palavras sem sentido e, num impulso, salta contra a montra.
O vidro estilhaça-se.
A Virgem Maria e o S. José voam com os estilhaços da vidraça e desaparecem no ar gélido da noite. As asas dos anjos, desfeitas em pó, espalham-se sobre o veludo. O Menino Jesus, repleto de pequenos pedaços de vidro, reflete as luzes de Natal. Uma aura celestial envolve a imagem.
Deitado entre as figuras, o ser brinca com as ovelhas. A sua alma reencontra a paz. O rosto, agora revelado pela iluminação da montra, transparece uma inocência própria da infância. Corre com as ovelhas pelos campos. Restam apenas os vestígios de lembranças remotas.
As senhoras, que ainda há pouco proferiam frases de admiração pela beleza do presépio abrilhantado pelas joias, gritam de horror. O terror alastra-se pela avenida.
Ouvem-se as sirenes da polícia. Os carros travam o trânsito.
─ As minhas ovelhas! As minhas ovelhas! As minhas… ─ soluça como uma criança, enquanto dois polícias arrastam o corpo inerte.
As forças já o abandonaram, mas a alma permanece. Enrolado, num canto da carrinha, o seu espírito regressou à noite de Natal com os pais e as pequenas irmãs. Um sorriso desenha-se no rosto escondido.
Jingle bells! Jingle bells!