«Choose rather to punish your appetites than be punished by them.»
Tyrius Maximus
A Richard Matheson e Stephen King
A noite está finalmente a chegar.
Olho para as paredes e posso ver as sombras que se alongam. Os cantos começam a ficar escuros e os sons estão mais altos, como intrusos madrugadores dentro de uma casa silenciosa. O cheiro a erva seca denuncia a presença do Verão, e as gotas de suor que secam na minha testa indicam uma trégua do sol ardente. Mas não há trégua de espécie alguma.
Não faço a mais pálida ideia da razão pela qual ainda me dou ao trabalho de martelar nestas teclas. Deveria estar — e estou, atente-se — aterrorizado. Lá fora, o silêncio desaparecerá muito em breve. O crepúsculo sanguíneo dará lugar à escuridão, e começará aquele que pode ser um final longo e arrastado. Cada noite é uma incógnita. Cada minuto, um veículo de fugacidade que quase enlouquece.
Os resistentes têm uma tendência para escrever ou deixar algum testemunho. Acho que a ficção com que contactam os leva a pensar que alguém surgirá das brumas do desespero e os salvará, fazendo daquele documento um tratado de resistência e coragem. Claro que, nesse enredo, a obra em questão também dá um rio de dinheiro, mas isto já sou eu a ser um pouco mais cínico, e estou sem força, ou tempo, para ser cínico, ou outra coisa qualquer. Quando há medo, toda a sofisticação se reduz à insignificância. É um pouco como a ideia que se pode ter de amor real, carnívoro e intenso, aquele que não permite veleidades elegantes e espirituosas, tão próprias do cinismo. Aí, somos todos ridículos, já dizia o tal poeta. Mas ele já está morto, safo de tudo isto, e eu nunca soube muito acerca de amor.
Há pouco, ouvi algo a restolhar lá fora. Restam, no máximo, umas três horas, por isso vamos ao que interessa.
As experiências científicas do último ano culminaram num erro que trouxe uma espécie de retorno perverso à noção de isolamento de um dos géneros humanos — a história daquele lugar onde só havia um homem, onde os animais falavam e ninguém comia carne. Pois, o que temos hoje em dia é uma coisa um pouco diferente. Tirando eu — e talvez mais alguns perdidos por aí —, só há mulheres. E desenvolveram um hábito terrível.
Abreviando a minha ignorância, eis o que sucedeu. Devido a uma qualquer asneira ao nível da biotecnologia, alguém soltou um bichinho invisível que enfraquece os portadores de maiores níveis de testosterona (ou seja, nós, os homens) e dá uns apetites estranhos aos restantes (ou seja, às mulheres). E elas, simplesmente, querem comer.
Contar-vos-ia a história toda, mas sinceramente, além de não ter tempo, quem é que a ia ler? Será que elas ainda conseguem fazê-lo? Quero dizer, parecem racionais o suficiente, mas são as hormonas, o cheiro. Quando a noite surge, os problemas começam. E vão começar.
***
Ei-la.
E com ela, o medo. O céu já é mais púrpura do que vermelho. A noite vem já ali, a passos rápidos, com botas de sete léguas.
Olho pela janela e vejo o causador do barulho precoce. Um «labrador» castanho-escuro, cheio de energia. Olha para mim através da janela e abana a cauda afectuosamente, baixando as orelhas num desejo de brincadeira. Que sorte! Para ele, é apenas a noite quente que se instala, acalmando o calor abrasador que se abate sobre o manto de pelo durante todo o dia.
Não vai demorar muito mais tempo. O céu já está negro. O «labrador» está quase invisível agora, a não ser pela dentição esbranquiçada da qual pende a língua, naquela respiração sempre ofegante.
Ouço um ruído lá fora. Algo que arranha o chão enquanto se arrasta, o som de unhas em madeira. O alpendre! Só pode ser!
O cheiro aparece, também. Alfazema e carne crua, parece-me, mas isso é porque a língua já sangra devido a um pequeno corte na boca. As comensais começam a aparecer. Nada de atrasos elegantes quando se tem fome.
Algo passa terrivelmente depressa pela janela. Salta de uma parede para a outra, num movimento impossível. Tenho quase a certeza de que está algo no chão, mesmo junto à porta, numa postura animalesca.
Subitamente, uma delas levanta-se. O rosto perfeito está ornamentado por uma boca escancarada da qual emergem duas presas, afiadas o suficiente para cortar madeira como papelão velho. Os olhos são estranhamente meigos, langorosos. Dir-se-ia que estava feliz por me ver, o que não deixa de ser verdade.
Estou a escrever só com uma mão agora. A fraqueza está a instalar-se. Mal consigo mexer o braço esquerdo.
Dois estrondos na porta. Pelo ruído, dir-se-ia um animal do tamanho de um urso de Kodiak, mas sei bem que o braço que desfere aqueles golpes é delgado e enganadoramente delicado. Estou a tremer.
Martelo mais um pouco no teclado. É estúpido. Estarei mesmo à espera de que alguém vá ler isto? Se calhar, sim. Talvez assim a morte não surja tão vazia e destituída de sentido.
Sou o último. Mais um jantar, como tantos outros foram.
Estrondo.
A porta vem abaixo. Vem aí alguma coisa.
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*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945