Deslizei por baixo da porta da moradia dos Freitas numa noite em que o vento de dezembro convidava as árvores a sussurrar e despertava as crianças adormecidas com calafrios. Percorri de mansinho as sombras e aproximei-me da porta do quarto do André. Esperava encontrar o menino a dormir, mas fui surpreendido pela primeira vítima, o Dino, a esvair-se em algodão, com as linhas de peluche espalhadas pela alcatifa.
Um movimento do meu lado direito chamou-me a atenção e vi o Sr. Cabeça de Batata ser desmembrado. De olhos e boca extraídos com uma colher, foi transportado para a cozinha. Dentro do micro-ondas, ouvi-o chiar e rebentar.
O vulto deslocou-se até à sala e, pouco depois, as chamas de um fósforo devoravam a mansão da Barbie. A boneca, abalada com a perda do guarda-roupa de sonho, deixou-se capturar. Foi para o Céu dos Brinquedos, decapitada por uma tesoura.
O fogo também não poupou o forte do Exército Verde. Derreteu os soldados numa agonia estoica, de quem não deixa ninguém para trás, e iluminou, por fim, o culpado pela carnificina.
Apreensivo, segui de perto o responsável pelos horrores até ao seu quarto. Entrámos. Eu refugiei-me onde me escondo sempre e testemunhei os gritos do pai, amarrado a uma cadeira, enquanto o pequeno assassino de seres imaginários lhe arrancava um dente com o alicate. Com o sorriso de menino traquina, o gémeo do André fitou-me, sem medo, enquanto escondia o engodo ensanguentado para a Fada dos Dentes debaixo da almofada.
Ao meu lado, gemia baixinho o Sr. Peúga, lamentando o desaparecimento da «meia-metade», a Sra. Peúga. A meia desemparceirada suplicava que alguém pusesse fim àquele cataclismo de criaturas fantásticas ― desencadeado pelos ciúmes de quem acreditava que o irmão era o preferido dos pais ―, mas o único super-herói da moradia estava sem pilhas, e o xerife, o braço forte da lei, encontrava-se colado à parede com Super Cola 3. E o que podia eu fazer, o Monstro Debaixo da Cama, se já não era temido pelas crianças?
***
Com a chegada da manhã, os Duendes Que Encolhem As Roupas Nos Roupeiros alertaram o Krampus de que, naquela casa, estava uma criança malcomportada que tinha de ir para a Casa dos Castigos.
Depois de ajudar os brinquedos em dificuldades, libertei o pai das amarras, e a mãe e o pequeno André que ainda estavam atados e amordaçados dentro de uma arca na cave. A Fada dos Sonhos ajudou-me a apagar as memórias dos Freitas com uma nuvem de pó mágico. A Sra. Peúga, depois de uma rápida centrifugação na máquina de lavar, juntou-se ao marido na gaveta da roupa interior. O Sr. Peúga fez sucesso como contador de histórias de terror, relatando a sua experiência às meias mais novas antes de estas se irem deitar.
Ao fim do dia, depois de celebrada uma cerimónia fúnebre pelas vítimas da tragédia, eu, o Monstro Debaixo da Cama, regressei à Monstrópolis, para me juntar ao Grupo de Apoio às Vítimas de Stress Pós-Traumático.