A Capitã

A Capitã

Autor(a):Daniel Lucrédio

Capítulo 1 - Desafio de Honra

A multidão soltou um grito de assombro, seguido por um misto de aplausos e vivas direcionados ao espetáculo. Martim não conseguiu um bom lugar, então tudo o que podia ver eram costas, braços levantados e breves relances da luta que se desenrolava no centro da arena cercada por soldados.

— O que aconteceu? Vocês viram? — o homem à sua frente perguntou, olhando para os lados. — O que foi aquele salto?

— Não sei, mas acho que ela se machucou! Parece que desistiu da luta, olha! — respondeu o outro, apontando com o dedo por cima do ombro do soldado à sua frente.

Martim dava pulos na tentativa de ver o que acontecia, seus cabelos loiros chicoteando o rosto à medida que subia e descia. Em uma rara abertura, conseguiu rapidamente ver as figuras dos dois lutadores. Uma das figuras usava uma armadura negra. Era a nova capitã da guarda. Ela estava de costas para o outro lutador. Mancando, afastava-se dele em passos rápidos. Este não tinha armadura, mas sim uma grossa roupa de couro tingido de vermelho. Estava parado, com as mãos próximas ao rosto. Martim não conseguiu ver nada além disso, pois a muralha de soldados que se acotovelavam cobriu sua visão mais uma vez.

Começou a correr desesperadamente para os lados, em busca de uma brecha. Ao tentar se enfiar entre dois homens, foi empurrado para trás e acabou caindo de joelhos em um monte de estrume de cavalo, sujando sua perna esquerda.

— Aqui não! Vai procurar outro lugar! — disse o agressor.

Xingou silenciosamente e balançou a perna para expelir um pouco da sujeira antes de continuar procurando por um lugar para conseguir ver a luta.

Chegou tarde, é verdade, mas a culpa não foi inteiramente sua. O anúncio feito na noite anterior dizia que se tratava apenas da apresentação da nova capitã, na sala do trono. Uma formalidade que, exceto pelo fato de se tratar de uma mulher e não um homem, não tinha nada de interessante. Mas quando a cerimônia se transformou em um desafio de honra, todos correram para fora do castelo, amontoando-se ao redor da pequena área cercada que normalmente era palco de treinamento de cavalos, e que foi improvisadamente transformada em uma arena de luta. Martim demorou demais. Quando chegou, viu cada centímetro da cerca ocupado por uma fileira de pelo menos três homens de espessura.

Tinha até conseguido um bom lugar na sala do trono, antes. Ainda sonolento, acompanhou de perto a demorada procissão de nobres, generais, soldados e, por fim, da rainha, que aos poucos se acomodavam em cada canto da sala. A rainha e as demais figuras importantes sentaram-se em uma área mais elevada, onde ficava o trono. Os soldados da guarda real, entre eles Martim, acomodaram-se em longos bancos que ficavam próximos ao corredor central. Mais atrás, em pé junto às paredes, posicionaram-se os serviçais do castelo e outras pessoas que conseguiram permissão para assistir à cerimônia.

Pouco tempo depois que todos estavam acomodados, um homem entrou na sala e caminhou com o nariz empinado até a lateral do corredor, perto de onde Martim estava. Ele quase pôde sentir o hálito do arauto, quando este anunciou, em sua voz alta e clara:

— Atenção, atenção! Todos saúdem Maria, capitã da guarda real, nomeada segundo a vontade de nossa amada rainha Catarina.

Todos viraram seus rostos para a grande porta de madeira que dava acesso à sala. Martim pôde ver quando a capitã apareceu, emoldurada pelos largos batentes. Ela parou por um breve momento e esquadrinhou a sala. Em seguida, retomou a caminhada em direção à área do trono.

Neste momento, Martim sentiu um cutucão em seu braço esquerdo. Olhou discretamente para o lado, com medo de chamar atenção, e ouviu um colega sussurrar:

— Psst, Martim, viu a perna dela?

Martim não tinha reparado antes, dada a naturalidade com que ela caminhava, mas agora viu, claramente, que uma das pernas dela — a direita — tinha uma haste metálica e uma espécie de gancho no lugar onde deveria ficar seu pé. Ele deve ter ficado boquiaberto, pois o colega voltou a cutucá-lo:

— Disfarça, ou ela vai perceber!

Martim subiu os olhos rapidamente e ficou impressionado com a vestimenta da capitã. Ela usava uma armadura de aço escurecido, que cobria todo seu torso, na frente e nas costas, incluindo os ombros. Era mais fina na cintura e mais arredondada do que a maioria das armaduras, o que indicava ter sido feita sob medida para seu corpo feminino. Havia algumas peças metálicas que cobriam parte das mãos, dos braços, coxas e da perna que ainda lhe restava. Não sendo uma armadura completa, o conjunto provavelmente lhe conferia grande mobilidade.

O elmo cobria toda a cabeça, exceto por uma fina ranhura na parte dos olhos. Do topo do elmo caía uma longa mecha de pelos negros, possivelmente extraídos de crinas de cavalos. Por baixo da armadura usava calças longas e uma blusa, ambas as peças brancas e bastante justas. Uma única bota de couro negra completava seu traje. O contraste entre o branco do tecido e a cor escura do aço criava um destaque que atraía o olhar. A armadura era simples, mas tinha uma beleza crua, e Martim ficou imaginando se era apenas uma peça cerimonial ou se tinha sido projetada para uso em batalha.

A rainha permanecia sentada, assim como todos os nobres e demais pessoas que estavam próximas ao trono. Ela seguia com os olhos astutos a sua mais nova protegida, mantendo o fino queixo erguido, provavelmente orgulhosa por sua escolha. A rainha tinha cabelos cinza, lisos e compridos. Usava-os em um alto topete que ficava preso por todos os lados pela fina coroa dourada que lhe outorgava o poder máximo do reino. Seus olhos eram também acinzentados, com um tom azul-escuro incomum. Os lábios e nariz finos eram bem posicionados no rosto idoso e sereno. Sua postura altiva não deixava dúvida de que pertencia à mais alta nobreza.

A capitã chegou ao degrau que separava a área do trono do restante da sala, ajoelhou-se e abaixou a cabeça, fazendo a longa mecha de fios negros que caía do topo de sua cabeça quase tocar o chão à sua frente. A rainha falou, com uma voz aguda e limpa:

— Maria, nobre cavaleira do reino de Évora, valente guerreira do terceiro batalhão do exército real, você aceita assumir o comando de minha guarda?

A capitã levantou o rosto e respondeu, com a voz confiante:

— Sim, Majestade!

— Levante-se e saúde seus leais soldados!

Maria levantou-se e virou-se de costas para a rainha, encarando Martim e os outros cinquenta e nove soldados da guarda real. Retirou sua espada da bainha, produzindo um som metálico agudo, e a apontou para o teto. Em seguida, falou, em um tom de voz alto e resoluto:

— Soldados da guarda real, saúdem nossa rainha Catarina!

Obediente, Martim repetiu o seu gesto. Retirou sua espada da bainha e a ergueu em direção ao teto, tomando o cuidado de não apontá-la para a rainha, o que era considerado um grave insulto. O mesmo foi feito por todos os soldados da sala, e o barulho uníssono ecoou pelo local.

Martim fazia parte da guarda real havia dois anos. Depois de muito tempo treinando em um batalhão da infantaria, conseguiu alcançar uma vaga nessa que era considerada a divisão de elite do exército. Não eram como as centenas de soldados comuns que podiam ser convocados em tempos de guerra para defender as fazendas, muralhas e torres do enorme castelo, e que muitas vezes sequer podiam ser chamados de soldados, sendo pouco mais do que camponeses que empunhavam armas como se fossem enxadas e forcados. Em contraste, os sessenta homens da guarda real viviam para guerrear. Eram excepcionalmente bem treinados para cuidar da proteção pessoal da rainha e de seu séquito, sendo presença comum em qualquer tipo de reunião ou cerimônia. Além disso, a guarda era frequentemente destacada para realizar operações de guerra especiais que exigiam excelência e habilidades acima da média.

Martim amava sua função e servia com o máximo de dedicação e esforço que conseguia, muito por causa de seu antigo capitão. Seu nome era Augusto, e ele era muito amado por toda a guarda, sendo considerado um líder valoroso, justo e leal. Sua morte trágica deixou todos muito abalados, principalmente Martim, pois Augusto sacrificou sua própria vida para salvá-lo.

Neste momento, todos embainharam suas espadas. O arauto, que tinha se afastado um pouco, voltou a tomar um lugar de destaque e anunciou:

— Ouçam, ouçam! Há alguém que se opõe à nomeação de Maria como capitã da guarda real? Que se manifeste agora, expondo seus motivos!

Dezenas de vozes se ergueram em um grande alvoroço na sala.

— SILÊNCIO! — gritou a rainha. Depois soltou um suspiro e disse: — Arauto, organize essa bagunça!

Martim olhou novamente para a capitã. Ela mantinha a postura confiante, com as costas eretas e o queixo erguido, não parecendo se incomodar com a forte oposição que estava prestes a enfrentar.

Ele ficou muito apreensivo quando soube da escolha da rainha, alguns dias atrás. Mesmo sem saber nada sobre ela, desconfiava que Maria teria grandes dificuldades para liderar aquele grupo de soldados, em sua maioria homens rudes e belicosos. Como uma mulher seria capaz de fazer com que obedecessem às suas ordens sem dúvidas e questionamentos?

A maioria dos soldados também não ficou satisfeita com a nomeação. Além de considerar que uma mulher não tinha competência para assumir esse posto, muitos queriam que o novo capitão fosse escolhido entre os líderes natos do pelotão. Falavam no nome de Silas, que era o mais forte. Havia também Percival, que era habilidoso e destemido, ainda que um pouco obstinado demais. Quando souberam que a rainha ignorou a vontade da maioria, escolhendo uma mulher desconhecida, vinda de uma divisão distante do exército, um clima de revolta e indignação se instaurou. E Martim tinha certeza que esse clima se voltaria de alguma forma contra ele, pois quase todos o tratavam com desprezo, por ter sido o principal responsável pela morte do querido capitão Augusto.

— Ordem, ordem! Um de cada vez! — disse o arauto. — Milorde, por favor, pode falar — disse, apontando para um nobre que estava ao lado da rainha.

— Isso é um absurdo, vossa Majestade! — começou o homem. Martim o reconheceu. Era um dos escudeiros da rainha. — Uma mulher não é capaz de...

— Complete essa frase, lorde Eustáquio, por favor! — vociferou a rainha, interrompendo-o. — Se não aceita que uma mulher possa liderar homens em combate, entendo que também não aceita que uma mulher possa liderar este reino, estou certa?

O homem se calou. Quase caiu numa armadilha. Se continuasse sua fala, estaria admitindo que não considerava a rainha como sua legítima governante e corria o risco de ser executado.

A rainha levantou o queixo e olhou para todos na sala, que neste momento estava repleta de burburinhos. Ela disse:

— Vocês conhecem a lei. Ninguém pode contestar uma nomeação real, exceto por uma questão de honra ou de ordem prática. O que vocês acham que uma mulher é capaz ou não de fazer, guardem para vocês mesmos!

Após alguns segundos de silêncio, a rainha fez sinal para o arauto. Este repetiu seu aviso, refraseando-o um pouco:

— Atenção! Há alguém que se opõe à nomeação de Maria como capitã da guarda real, por motivo de honra ou de ordem prática? Que se manifeste agora, expondo seus motivos!

Fez-se um silêncio momentâneo, mas que logo foi quebrado por uma voz vinda da direção de uma das paredes:

— Eu me oponho!

Todos se viraram para ver quem era o desafiante. O arauto, reconhecendo-o, disse:

— Mestre Aires! Exponha seus motivos.

O homem se afastou da parede e foi até o corredor central, caminhando lentamente até o local do trono. Vestia uma grossa roupa de couro vermelho da cabeça aos pés. Tinha um bigode fino e grisalho, a mesma coloração de seus cabelos encaracolados. Martim tentava identificar alguma reação na capitã, mas seu elmo impossibilitava a leitura de qualquer tipo de expressão facial. Mestre Aires disse:

— Maria não tem as habilidades para assumir tão honrado posto de comando. Eu fui seu professor de esgrima e sei muito bem que ela pode ser rápida, mas não tem força para combater, como já ficou provado quando estava no exército. Eu mesmo já a derrotei em diversos duelos. Droga, ela tem uma perna só! — Virou-se para os soldados e disse, apontando para Maria enquanto estampava preocupação no rosto: — Vocês acham que uma perneta será capaz de liderá-los?

— Mestre! — disse a capitã, com a voz grave. — Você me desonra com tal testemunho!

Ele sorriu antes de virar-se e encará-la. Respondeu, com o rosto erguido e a boca retorcida em desgosto:

— Você é quem desonra a guarda real! Você é fisicamente incapaz de assumir esse posto, e pretendo provar isso em combate. Majestade? — disse, olhando para a rainha, enquanto tirava sua luva esquerda e a jogava no chão, aos pés de Maria, um gesto de desafio para uma luta.

A capitã não esboçou reação alguma. Foi a rainha quem respondeu:

— Maria, você teve sua honra atacada por mestre Aires e foi desafiada. Deseja defendê-la em combate e assim conquistar seu direito de assumir o posto conforme minha vontade?

A capitã ficou alguns segundos parada, olhando para seu oponente. Enfim disse:

— Sim.

— Pois bem, que seja feito! — disse a rainha. — Maria, capitã contestada da guarda real, e mestre Aires, nobre espadachim deste reino, se enfrentarão em duelo até a morte! Arauto?

Antes que o arauto desse seguimento à cerimônia, ouviu-se outra voz:

— Eu também me oponho!

Mais uma vez, todos viraram suas cabeças em busca do homem que protestava. Identificando-o, o arauto anunciou:

— Lorde Caim, comandante do quinto batalhão da infantaria. Exponha seus motivos.

Martim não teve dificuldades em encontrar o dono da voz. Conhecia Caim, e o homem se destacava em qualquer multidão. Tinha quase dois metros de altura e vestia uma armadura prateada. Diferente da armadura de Maria, a sua cobria todo o seu corpo, da cabeça aos pés, sem deixar nenhum espaço desprotegido. Segurava um também reluzente elmo debaixo do braço, deixando à mostra seu rosto quadrado, que era coberto por uma farta barba e longos cabelos cor de cobre. Por trás da franja brilhavam seus olhos verdes.

Lentamente, e produzindo sons de sinos com suas botas metálicas, caminhou pelo corredor até parar ao lado do mestre Aires. Fez uma reverência em direção à rainha e começou seu discurso:

— Majestade, por anos fui comandante do quinto batalhão da infantaria. Fui à guerra em nome da coroa, expulsei muitos invasores e matei mais inimigos do que consigo me lembrar. Em inúmeras ocasiões fui condecorado pelo seu falecido marido, o rei Gregório, que me prometeu ser agraciado como capitão da guarda real assim que a campanha no norte terminasse e a oportunidade surgisse. Sinto-me humilhado ao ver que fui preterido por uma... — Ele hesitou. Martim entendeu que ele não queria cometer o mesmo erro que Lorde Eustáquio. Enfim completou seu pensamento: — Uma soldada rasa!

A rainha respondeu ao desafiante:

— Não sou obrigada a cumprir as promessas feitas por meu marido! De qualquer maneira, lembro-lhe que a senhorita Maria também foi condecorada pelo rei por atos valorosos em guerra, e ele também prometeu a ela uma posição de mais destaque. Não vejo um motivo válido para sua objeção à nomeação.

Caim ficou com o rosto vermelho, enraivecido após a negativa da rainha. Abaixou a cabeça e olhou para Maria, que estava poucos centímetros à sua frente. Precisava olhar muito para baixo para encará-la, dada a diferença de altura entre eles. Com um sorriso maldoso, disse, baixinho:

— Sim, prometeu, não é? — Em seguida, subiu a voz: — Eu disse soldada? Eu quis dizer uma prostituta, que foi para a cama com o rei em troca dessa promoção!

Ele retirou sua pesada manopla de aço e a jogou aos pés da capitã, produzindo um som metálico que ecoou pela sala. Conversas e burburinho começaram imediatamente. A rainha levantou os braços e esbravejou, com o rosto e a voz carregados de revolta:

— Comandante Caim, você nos desonra com suas falsas acusações! — Em seguida, dirigiu-se à capitã: — Maria, ambas tivemos a honra atacada pelo comandante Caim. Peço, como sua rainha, que defenda a nossa honra em combate e assim conquiste seu direito de assumir o posto conforme minha vontade, além de calar a boca desse falastrão que ousa difamar seu falecido rei. Aceita meu pedido?

— Sim, Majestade! — Maria respondeu, olhando para cima para encarar o gigantesco homem.

A rainha olhou para todos ao seu redor. Depois de um tempo, disse:

— Mais alguém? Gostaria muito de saber quem mais quer discordar de mim hoje.

Sem obter resposta, ela suspirou e disse:

— Pois bem, pois bem! Maria, capitã contestada da guarda real, irá enfrentar em combate mestre Aires e comandante Caim. Arauto, faça o anúncio, por favor. — Dizendo isto, a rainha se afundou no trono, cansada.

O arauto mais uma vez ergueu a cabeça e começou a falar:

— Atenção! Atenção! Os combates deverão ter início em poucos instantes. Dirijam-se todos à área de treinamento de cavalos, ao lado do...

Martim não conseguiu ouvir mais nada. Todos se levantaram. Primeiro os soldados, fazendo muito barulho com suas armaduras metálicas que batiam umas contra as outras. O arrastar de cadeiras e gritos de excitação indicavam que até mesmo os mais finos nobres se acotovelavam enquanto corriam em direção à saída como se fossem um bando de crianças em busca de doces.